ELOGIO À MAGREZA TAMBÉM é GORDOFOBIA



Eu sempre fui gordo, desde muito criança. Pior ainda, eu sempre odiei ser gordo. Nunca me aceitei e até hoje eu tenho dificuldade em pensar nisso. Eu gostava de ir na piscina mas tinha tanta vergonha de ficar de sunga que eu saía correndo do vestiário enrolado numa toalha e só tirava quando tava dentro da água. Lembro do meu pai gritando pra mim do lado de fora da piscina pra eu parar de ser bobo e me divertir. "Se solta!". Eu era uma criança e já me sentia absurdamente refém do meu próprio corpo

Meu primeiro contato com a minha própria gordura foi provavelmente em alguma brincadeira de rua na minha cidade do interior. Cresci livre e solto, brincando de esconde-esconde nos morros de Jundiaí. Gritavam que eu não podia me esconder porque era gordo e “muito fácil de achar”. Foi assim que eu entendi que era gordo. Tive que lidar com os gritos dos outros meninos dizendo "gordo-baleia!" a infância inteira.  Na escola eu usava uma blusa de frio preta por cima do uniforme branco o ano inteiro, independente do calor, pois nunca tive a coragem de usar a camiseta branca do uniforme, que marcava minha barriga e meus peitos. Meu pai brigava comigo todos os dias, implorando pra eu tirar aquele moletom preto. 

Além do calor físico, eu sentia o calor da vergonha e desespero de ser gordo. Desde muito pequeno eu aprendi que ser gordo era errado, e que tinha algo muito ruim em mim porque eu era assim. Por esses e outros motivos, meu maior sonho sempre foi ser magro. Foi por isso que eu sempre fiz dietas e tentei emagrecer. Foi também por isso que eu perdi 30 kgs. Eu queria ser "normal" e não ter que lidar com o fato de eu ser diferente. Eu não aguentava mais.

Quando eu pensava em emagrecer, achava que iria ficar feliz e realizado e que nada iria me incomodar. Achava que quando eu emagrecesse, eu veria o mundo de forma mais leve e não teria mais que lidar com as pessoas comentando sobre meu corpo ou sobre a minha aparência. Eu acreditava que quando eu fosse "normal", meu peso nunca mais seria um assunto ou um problema. Errei feio.
Durante o processo de emagrecimento eu tive que aprender a lidar, quase que diariamente, com o mesmo preconceito mas agora disfarçado de elogios. Tive que aprender a lidar com as pessoas me tratando completamente diferente, só porque eu estava emagrecendo

Quando você emagrece, as pessoas mudam absurdamente. O mundo de repente se vira pra você como se você fosse um herói e te tratam como se você fosse um grande vencedor. Emagrecer parecia a cura do câncer, um milagre alcançado. Eu chegava no trabalho e era ovacionado porque estava cada dia mais "magro". Tinham dias que o escritório inteiro parava por 2 minutos pra me olhar entrando, todos me gritando "parabéns!". Todo mundo me apertava, pediam pra eu dar voltinhas e mediam a minha barriga com as mãos sem a menor cerimônia. Teve gente que chegou a bater palmas e a dizer que "agora sim!", como se fosse um espetáculo. Teve gente que não me reconheceu na rua porque de repente eu tava tão bonito, e era inacreditável. 

Milhares de vezes um bom dia virou "você tá muito magro!". Chegar em algum lugar diferente era primeiramente ter que desfilar pra todo mundo ver como eu estava emagrecendo. Me perguntavam qual era a "mágica" e a receita milagrosa. Nada mais importava além do fato de que o Diogo estava emagrecendo. Eu me sentia um objeto de estudo, um palhaço de circo. Parecia que, somente por ter emagrecido, as pessoas de repente olhavam pra mim e que nunca na vida eu deixaria de ser apenas um corpo, fosse gordo ou magro.






Isso tudo não me trouxe a alegria que eu esperava. Eu tinha na verdade vontade de gritar e pedir pra que parassem de encostar em mim! Não conseguia deixar de lembrar das milhares de vezes que eu tinha sido xingado ou criticado, única e exclusivamente por ser gordo. Agora que eu já não era mais assim, tava tudo bem. Mas até pouco tempo atrás, eu passava desapercebido; de repente eu comecei a ter valor e as pessoas queriam olhar pra mim. Só que eu nunca esqueci tudo que passei.

Durante a vida inteira eu ouvi que eu tinha "um rosto bonito", porque uma pessoa gorda jamais vai ser considerada linda ou perfeita - no máximo ela tem um rosto bonitoNo entanto, de repente, aquele menino gordo e exótico de rosto bonito, virou um menino lindo, gostoso e "homão da porra". Você vai de gordo-nojento-preguiçoso que não toma atitude, pra bonitão que tomou "vergonha na cara". As pessoas que ontem me davam tapas, são as que hoje me assopram. Eu nunca fiquei feliz com os elogios que recebi porque o elogio à magreza também é gordofobia. Ele ainda reforça a ideia de que o seu peso e o seu corpo determinam quem você é. 

Gordofobia não é achar que uma pessoa gorda é feia; gordofobia é achar que ela é feia, só porque é gorda. Assim como também é gordofobia perpetuar os padrões de beleza que impõem que só o magro é bonito, e o resto é lixo. Gordofobia é discriminar o acima do peso, só porque ele é gordo, mas também é gordofobia integrar o que é magro, só porque ele é magro. Gordofobia é desprezar o gordo a vida inteira e só aceitá-lo quando ele emagreceu. E foi isso o que aconteceu comigo. Por estar magro, eu era então recebido de braços abertos pra dentro do "padrão", e a partir dali eu seria alguém. 





Eu demorei pra aceitar o meu "novo corpo" porque eu não conseguia ver essa alegria que as pessoas estavam enxergando. Eu ficava ansioso e não queria ter que falar de dieta, de peso, de emagrecimento. Eu quis emagrecer pra me livrar de tudo isso e mesmo mais magro, isso me perseguia. Mesmo estando magro e sendo elogiado diariamente, eu só conseguia lembrar de tudo que eu já passei por ser gordo. Eu fechava os olhos e ainda lembrava de todos os desafios que eu tive que enfrentar, única e exclusivamente por ser gordo. Eu não teria tido os problemas que eu tive, se eu não tivesse sido gordo. Na verdade, eu não teria passado por nada disso se ser gordo não fosse um problema

O que eu queria mesmo era que não se falasse mais de corpo, nem do meu nem do de ninguém. Eu ficaria feliz de saber que nenhuma criança jamais vai ouvir o que eu ouvi durante minha infância. Eu teria ficado feliz se eu tivesse a certeza que nenhuma menina vai querer vomitar o jantar pra parecer com a modelo da revista. Eu ficaria feliz se números em uma balança não significassem nada e se eu não tivesse passado a infância inteira me escondendo em moletons escuros. Eu ficaria feliz se as estatísticas não mostrassem que os distúrbios alimentares surgem a partir dos 12 anos de idade, e que quase 10% dos jovens sofrem com eles. Ficaria feliz se não fosse verdade que 1 entre 5 pacientes com anorexia nervosa cometem suicídio. E esse é o real problema.

O problema é continuar acreditando que ser magro é sinônimo de saúde e beleza; o problema é continuar descreditando aquele que tá acima do peso, pra favorecer o que tem um corpo considerado bonito. Se eu não vibrei e sorri quando me enalteceram, foi por raiva. Raiva de saber que esse mundo ainda valoriza demais os nossos corpos, e só isso. Foi também por  medo de perceber que eu emagreci, mas a sociedade ainda é podre. Eu não vou ficar feliz enquanto os gordos forem discriminados porque as marcas da gordofobia nunca somem. O gordo-baleia da infância vai ser pra sempre o gordo-baleia. Eu mesmo ainda sou aquele gordo-baleia enrolado na toalha e com o agasalho preto. Eu emagreci, mas não sou magro - sou apenas um ex-gordo

Pra sempre eu vou ter dentro de mim aquele menino apavorado com a camiseta branca,  contando calorias e rabiscando em cadernos tudo o que eu comi no dia - e isso nunca vai mudar. Se sigo na luta pra ter um corpo mais saudável e  mais magro, não é pra pertencer e ser "normal" ou bonito. Eu aprendi que emagrecer não significa nada, apenas alguns números a menos em uma balança. Apesar de estar mais contente e satisfeito, ainda sinto medo e vergonha e acho que nunca vou ser suficiente. E esse é o problema. Se ainda sinto tudo isso, é porque um dia eu saí de casa pra brincar na piscina e voltei chorando porque descobri que eu era o gordo-baleia. A diferença é que hoje, o mesmo gordo-baleia tenta acreditar que um dia os valores vão mudar e corpo nenhum vai ser parâmetro de felicidade. De ninguém, nem mesmo a minha.


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